Os contos de pesadelo tecnológico de Black Mirror estão de regresso à Netflix, a 29 de Dezembro. Já vimos a nova temporada e só há um conselho a ter em conta: prepare-se.
Criada em 2011, por Charlie Brooker, para o canal britânico Channel 4, Black Mirror sempre foi certeira em retratar a forma como os avanços tecnológicos ainda nos podem deixar de pé atrás, com muita crítica social à mistura. E, acima de tudo, com uma ironia e acidez que são dignas de nota. Em formato de antologia, a aterradora visão futurista e distópica do seu criador conquistou uma verdadeira legião de fãs.
Se, inicialmente, as temporadas eram curtas, com três episódios capazes de deixar qualquer cabeça em água, com a associação à Netflix, o número de episódios aumentou. E é justamente isso que acontece com esta quarta temporada, que aterra no serviço de streaming no final do ano, com seis episódios.
Em primeiro lugar, há que ter em conta que esta é a temporada mais diversa de Black Mirror, com destaque para a panóplia de estilos incutida pela visão de cada realizador. ArkAngel, por exemplo, é filmada num estilo de filme indie; USS Callister é um episódio de encher o olho, numa clara alusão a Star Trek, colorido até mais não; Metalhead, a aventura mais curta, é uma intrigante caçada a preto e branco – uma estreia em Black Mirror.
Em USS Callister, é perceptível o investimento feito na série: com um elenco de excelência, onde se contam nomes como Jesse Plemons (Fargo), Jimmi Simpson (Westworld ou House of Cards), Michaela Coel (Chewing Gum e que também já andou pelos episódios de Black Mirror), o universo paralelo leva-nos até uma aventura passada a bordo de uma nave espacial, ao estilo de Star Trek, com aquele estilo anos 60.
Como estamos a falar de Black Mirror, claro que há alguma coisa que vai dar para o torto. Em época de escândalos de assédio sexual em Hollywood, não deixa de ser curioso que o episódio incida também no jogo de poder quando há um homem a chefiar uma equipa – mesmo que seja no espaço. A realização deste episódio está a cargo de Toby Haynes, que já trabalhou em séries como Dr. Who.
Com ArkAngel, o primeiro episódio a ser divulgado, a realização está a cargo de Jodie Foster. É retratada a forma como a relação entre mãe e filha evoluiu ao longo dos anos, que envolve, claro está, um dispositivo tecnológico que vai influenciar a relação entre as duas.
Se isto já está a parecer uma situação familiar, é porque a ideia passa mesmo por criticar os chamados pais-helicóptero e a constante necessidade de vigilância dos filhos. Afinal, Black Mirror sempre gostou de tocar na ferida da ‘tecno-paranóia’… e sensação de controlo.
Não é a primeira vez que a Netflix ruma até à Islândia – vimos isso em Sense8, também uma produção original do serviço de streaming. Crocodile foi gravado por lá, com paisagens de encher o olho e o ecrã. Neste episódio, que conta com um desempenho de excelência de Andrea Riseborough, a frase mais apelativa – que já conhecemos do trailer – é mesmo «o que é privado fica privado».
O enredo retrata a forma como um pequeno dispositivo pode ser utilizado para aceder a memórias e impressões de acontecimentos. Se já está a pensar que pode recair na temática do episódio ‘Toda a tua história’, da temporada um, o conceito – e também o dispositivo é diferente.
Se precisar de tempo para respirar, Hang the DJ ainda dá alguma margem de manobra aos fãs da série. Se acha que é possível o dating ficar-se pelos Tinder e algoritmos desta vida para encontrar o conceito de alma-gémea, claro que Black Mirror vai mais além.
Não tão fatalista como outros episódios, mostra um casal de desajeitados que utiliza um sistema avançado que programa todos os aspectos das relações: quando começam e qual o prazo de validade. A questão é que o utilizador não tem grande voto na matéria e a coisa pode bem dar para o torto.
Quem já viu Black Mirror está habituado a tensão: vimo-lo em White Bear, por exemplo, que é uma constante perseguição e luta pela sobrevivência. Metalhead vai mais além, com Maxine Peake num absorvente episódio filmado inteiramente a preto e branco, com a realização assinada por David Slade, responsável por Hannibal ou a série American Gods.
Não há grande ordem para ver Black Mirror, é essa a parte boa de ser uma antologia de contos, mas este episódio convém mesmo deixar para o fim e estar mesmo, mesmo, com atenção a todos os pormenores. Charlie Brooker sempre disse que cada aventura de Black Mirror é passada em universos diferentes, mas afinal pode haver pontos comuns, como mostra este Black Museum.
Repetindo a fórmula de ‘Contos de Natal‘, o fio condutor deste episódio é um museu perdido nos Estados Unidos, que não é para os fracos de coração. Ao ver três objectos que levaram a que fossem cometidos crimes à conta da tecnologia, aí está o ponto de partida para descobrir o que torna aquele objecto digno de museu.
Em suma, a escrita de Charlie Brooker é quase como ver um lutador de wrestling: sabemos que a situação é a fingir, mas alguma cadeirada inesperada que apareça no caminho surte sempre algum efeito psicológico em quem vê. E alguém precisa de falar sobre a fixação que há com berbequins nos episódios…
Se Black Mirror é para toda a gente? Não, não é. E isto não se prende apenas com o rótulo de ficção científica e distopia. Black Mirror não é para toda a gente porque é difícil de aguentar, é esta a questão.
É uma montanha russa desgovernada a cada episódio, com escassos momentos feel good. Afinal, foram precisas três temporadas para o laivo de esperança que é San Junipero – digno de Emmy, como se sabe.
Para quem gosta de enredos surpreendentes, em que o melhor é mesmo estar-se preparado para o pior ao virar da esquina, é aposta certa. Num regresso mais crescido em número de episódios, prepare-se para esta admirável nova temporada.